Como um romance (1): Uma leitura de como inspirar leitores.
O aluno não gosta de ler.
Ele não consegue se concentrar no texto.
As obras literárias são muito difíceis para nossos alunos.
Ao invés de ler, vamos assistir ao filme!
Essas são algumas das afirmações que permeiam o universo daqueles que trabalham com educação e encontram, na ausência do hábito de leitura, a necessidade de compreender o fenômeno que, ainda que não tenha nada de novo, ainda é um grande desafio para pais e professores no exigente século XXI.
O problema é que, quando pensamos no aluno como não-leitor, ou ainda, em nossos próprios filhos como não-leitores, não questionamos os verdadeiros motivos de tal ato. Ao contrário, avançamos para a punição como forma de suprimir possíveis falhas reconhecidas como nossas ou abrimos mão da responsabilidade de reinseri-los no universo de leitura. Foi pensando nisso que o escritor e dramaturgo francês Daniel Penac(2) encarou o desafio de entender as razões pela quase ojeriza que alguns jovens têm do ato de ler, e criou esse instigante trabalho que aborda o assunto com a seriedade de uma tese e a leveza de uma narrativa contemporânea. Por isso, seu trabalho mais conhecido nas discussões educacionais é intitulado Como Um Romance.
A obra de Daniel Penac está dividida em quatro partes: Nascimento do Alquimista; É preciso ler; Dar a Ler e O que lemos, quando lemos. Cada capítulo trata de três patamares fundamentais: O que é o leitor? Como se forma um leitor (autoformação)? E como se faz a manutenção desse leitor? De forma bastante pedagógica ele nos ensina a perceber traços e sinais essenciais para a compreensão desses patamares.
Mesclando teoria da educação e alguns trechos ficcionais, daí a escolha pelo título metalinguístico, Penac nos apresenta os processos de percepção e os erros de ações comuns gerados no momento em que detectamos a barreira da leitura. Ações que ocorrem em diversos espaços de aprendizagem, como na escola ou em casa. Os pais que pedem ao filho que suba para o quarto e leia, em toda sua autoridade, não percebem o período que se passou entre a última vez que incentivaram verdadeiramente a leitura até o momento em que ela passou a ser uma ordem. O professor que apresenta uma leitura, aparentemente exaustiva, dado o volume do objeto livro em mãos, e que prova aos seus alunos, com leitura em voz alta, que todo o “muro” que os divide da obra começa a ruir à medida em que o texto avança. E o melhor, em minha opinião, é que o autor sugere uma liberdade nas relações de livro-leitor que foge das regras exteriores ao universo criado pelos envolvidos nessa relação.
No primeiro capítulo Nascimento do alquimista, o autor ilustra desculpas universais que tentam justificar o desinteresse pela leitura, por exemplo: a televisão, como sendo uma das maneiras mais confortáveis, já que pressupõe um único ato – o de proibir, de justificativa. O aparelho televisor é visto sempre como o vilão da história; contudo, ao contextualiza-lo dessa maneira (como mera muleta do educador) a proposta é mostrar quem são os verdadeiros responsáveis pela ausência no desejo de leitura em uma criança. Quem apaga a luz da ficção e fecha as portas do universo de encantamento para abrir o abismo das obrigações de leitura são os próprios pais, segundo o autor. Esses, com a ausência plena de responsabilidades, jogam em seus filhos a responsabilidade de interessar-se, ler e entender; sem que eles, pais, precisem acompanhar, participar e, quem sabe, transformar aquele ato, por vezes isolado, em um saudável hábito de comunhão familiar. A atitude impositiva dos pais, ainda nas palavras de Penac, faz com os mesmos substituam suas imagens afetivas de acolhedores e agregadores em, quase irreversíveis, imagens de seres inquisidores. A síntese desse capítulo pode ser observada no trecho abaixo:
Éramos o contador de histórias e nos tornamos contadores, simplesmente.
Eh! É isso…
É isso… a televisão elevada à dignidade de recompensa… e, em corolário, a leitura reduzida ao nível de obrigação… é bem nosso, esse achado…
As obrigações que afastam a criança do seu universo de relação independente com as histórias dos livros, lidos pelos pais, que se trata, às vezes, da única interação entre Pai e filho durante o dia (Vide No caminho de Swann – Marcel Proust(3), interrompem a formação do Alquimista que traduz em riquezas o universo de códigos apresentados, referenciados por ambientes e tempos, diante dos olhos daquele que, no calor da fase mais criativa que temos, não consegue passar da página 48.
No segundo capítulo, É preciso Ler (O dogma), o autor descreve os discursos que querem forçar uma leitura comprometida com os interesses da sociedade e, completamente, indiferente aos interesses do leitor. O argumento principal do capítulo se fundamenta na oração É preciso ler… Exposta com os diversos motivos pelo qual nossa leitura é induzida. Dentre eles destaco: Ler para…
…aprender
…dar certo nos estudos
…conhecer melhor os outros
Essa redução, ou melhor, tentativa de padronizar os reais motivos de uma leitura apresenta objetivos palpáveis, no entender do discurso, que possam justificar o interesse do leitor. Assim, de forma generalizada, entende-se ser capaz de, com esses argumentos, convencer um não-leitor a se tornar um leitor. Enquanto isso o mais importante na relação leitor-livro é esquecido. E o que é o mais importante nessa relação, segundo Penac, é a Liberdade.
A mesma liberdade que sentimos quando adentramos uma história, ou seja, quando temos contato com o universo dos signos presentes na obra, devemos ter na relação com o objeto-livro. E é por isso que o autor, no último capítulo, vai tratar das regras que reestabelecem a relação que tínhamos nos primeiros contatos com o universo ficcional do qual nos lembramos. Memórias de uma infância que se perdeu quando aquilo que era uma conquista começa a ganhar traços de tragédia. Ao aprender a ler (a conquista) a criança perde a sua principal companhia – aquele que lia ao seu lado e que agora, desprovido de responsabilidades, em seu entendimento, abandona o novo leitor as suas viagens solitárias, transformando-o em um leitor-órfão (a tragédia), já que seus pais sempre terão algo mais importante para fazer; encerra o autor, novamente, parafraseando Proust.
Em Dar a ler, terceiro capítulo do livro, Penac nos mostra o quanto usamos o tempo como desculpa para não ler. Em seguida, apresenta cálculos que consideram pequenas leituras diárias em busca de grandes leituras (equivalente ao tamanho do livro) em curtos espaços. Esse capítulo nos mostra que o principal passo para iniciarmos a leitura de uma obra extensa é abri-la – le début d’un voyage est dans l’acte de se lever et commencer à marcher.(4) Surge o exemplo do professor em sala de aula com o livro O Perfume de Patrick Süskind e sua edição de páginas espaçadas, vastas margens, enorme aos olhos daqueles refratários à leitura, e que prometia um suplício interminável.
Na página 109(5) o autor retoma essa imagem para desfazê-la: Um livro grosso é um tijolo. Liberem-se essas ligações, o tijolo se transforma em nuvem.
No quarto e último capítulo, o que lemos, quando lemos (ou os direitos imprescritíveis do leitor), Penac fecha com chave-de-ouro em suas dez diretrizes que permeiam as relações entre leitor e livro.
1 – O direito de não ler
2 – O direito de pular páginas
3 – O direito de não terminar um livro.
4 – O direito de reler.
5 – O direito de ler qualquer coisa.
6 – O direito ao bovarismo.
7 – O direito de ler em qualquer lugar.
8 – O direito de ler uma frase aqui e outra ali.
9 – O direito de ler em voz alta.
10 – O direito de calar.
Na diretriz de número 10, que o autor assinala como predileta, se posta a máxima de todas as relações. O que há de íntimo não se deve comentar. E, quando estamos em contato com algo que nos faz revelar setores de nosso ser auto-anulados pelas exigências das relações cotidianas, estamos em contato com o que há de mais íntimo em nós mesmos. Falar ou não é uma decisão que cabe somente ao leitor.
Em suma, Daniel Penac nos deixa, no legado de seu trabalho, uma importante lição de que quanto mais o ato de leitura for encarado como uma obrigação, menos conseguiremos convencer nossos jovens a ler. Que leitura não é apenas um hábito, mas, antes de mais nada, um momento de prazer cujo envolvido precisa ter liberdade para se deixar permitir e, o mais importante, que se você não pode criar um leitor, você pode e deve inspirá-lo. Se o ato de leitura for uma prática coletiva, há inserção do texto no instante em que se revela o universo narrativo e nas conversas posteriores sobre a experiência vivida naquele momento. Dessa forma, uma boa história viverá muito mais e se multiplicará nas bocas de seus admiradores, leitores e escritores de novas leituras.
Ari Silva Mascarenhas de Campos – Notas de Leitura.
Graduado e licenciado em Letras, pós-graduado em Estudos Literários (2010), doutorando em estudos comparados das literaturas de língua portuguesa (FFLCH- USP), Mestre em Literatura Comparada de Língua Portuguesa (FFLCH- USP) e com Extensão Universitária pela faculdade de Filosofia, Letras e ciências humanas ( FFLCH-USP) em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (2010). Autor dos Livros Fruto Vermelho (2008), Contempoemidade (2011) e Segundos (2014). Trabalhou na edição e assinou o posfácio do livro Bala com Bala.
(1) Título original: Comme um roman- Edittions Gallimard, 1992.
(2) Daniel Pennacchioni (Casablanca, 1 de dezembro de 1944) é um escritor e dramaturgo francês. Tem como destaque, o Prêmio Renaudot de 2007 que ganhou pelo seu romance autobiográfico, Mágoas de Escola
(3) Du côté de chez Swann é a primeira parte da principal obra de Marcel Proust À la recherche du temps perdu- Em busca do tempo perdido), escrito em 1913.
(4) O princípio de uma viagem está no ato de se levantar e começar a caminhar. Tradução: Leny Werneck
(5) Edição brasileira – 2003.